terça-feira, 22 de julho de 2014

Contos do Caçador: 1 - A Loira

Gabriel sabia que era bobagem... Só podia ser. Não existe essa coisa de "Loira do Banheiro". Não podia existir. Cético por convicção, achava graça de tudo e todos. Religião, superstições, fábulas e lendas, tudo farinha do mesmo saco pro imbatível garoto de 16 anos.
Agora já passavam das sete da noite, a escola estava vazia. Os outros três garotos que haviam desafiado Gabriel tinham nas feições uma estranha mistura de medo e graça, sorrisos nervosos e mãos tensas que indicavam a Gabriel o caminho.

A velha escola municipal estava totalmente às escuras, e por um pequeno buraco na grade Gabriel passou. O desafio lançado, e praticamente irrecusável, era entrar na escola depois do horário, dirigir-se ao banheiro no final do corredor do segundo andar, e olhando diretamente no espelho invocar a tal loira. O prêmio: 100 reais em dinheiro, previamente "casados" antes de Gabriel entrar, e todas os trabalhos daquele bimestre feitos pelos três medrosos do outro lado da cerca. Lambuja, pensou Gabriel enquanto desaparecia nas trevas que tomavam o pátio da escola.

Chegando no pé da escadaria, Gabriel lembrou-se da história por trás da lenda: dizem que ali mesmo, na sua escola, uma linda garota loira, de 14 anos, havia cortado os pulsos no banheiro após não aguentar mais sofrer da gozação de seus colegas. Chamavam-na de magrela, CDF, raquítica, e outras malvadezas tão comuns a crianças cruéis. A menina, que sempre fora tímida e tinha alguns problemas antes de entrar na escola, não aguentou a pressão e escolheu o caminho mais rápido... Mas não sem antes escrever, com seu próprio sangue, nos espelhos do banheiro "eu vou voltar".

"Bobagem", pensou Gabriel, "histórias pra boi dormir", muito provavelmente a única coisa que havia morrido ali eram as baratas e ratos que infestavam o velho prédio.
Ao chegar no segundo andar, Gabriel parou no começo do longo corredor. Não queria admitir, mas diante do escuro pavimento sua convicção já não era tão grande... Tinha uma estranha sensação de não estar sozinho naquela escuridão,,, Podia jurar que havia alguém ali, quase podia ouvir uma respiração pesada ao seu lado. Pegou o celular para iluminar um pouco o corredor. Além disso, ele tinha que filmar tudo o que aconteceria no banheiro, a condição imposta para receber o prêmio.

Resolveu apertar o passo e sair logo dali. sabia que não havia nenhum fantasma assombrando o banheiro, mas mesmo assim ficar numa escola escura à noite não era sua ideia de diversão. Logo estava diante do banheiro feminino do segundo andar, aquele que mesmo durante o dia era evitado pelas alunas. A porta rangeu levemente quando Gabriel a empurrou, e o som de um lento gotejar ecoava nas paredes vazias. O cheiro era desagradável, uma mistura de produtos de limpeza e mofo.

Gabriel foi até o último espelho, aquele que os três desafiantes haviam indicado. Não sabia se era o escuro, o cheiro ou o som macabro que reverberava naquele banheiro escuro, mas seu coração agora batia forte, e ele podia sentir o martelar seco das batidas em seus ouvidos.

Certificou-se de ligar a câmera do celular e apontar para o espelho. Queria acabar logo com tudo aquilo e receber seu prêmio. Posicionou-se diante do espelho, e escrutinou a superfície arranhada como se buscasse algo mais do que seu pálido reflexo, mas nada de anormal apareceu. Sua voz saiu fina e frágil quando falou:

- Apareça.

Nada.

Engoliu em seco, tentando se lembrar que a câmera filmava suas feições um tanto assutadas, e empertigando-se falou mais uma vez:

- Eu te convoco. Apareça...

Mais uma vez nada além do reflexo escuro no vidro.

Só precisava repetir a invocação mais uma vez. Três vezes, dizia a lenda, e o espírito da garota voltava para sua vingança.

- Apareça, loira idiota!

Nada aconteceu. Gabriel suspirou discretamente, e sorriu para a câmera. Levantou o dedo do meio, desligou o aplicativo que filmava e virou-se para sair dali e reclamar seu prêmio. Foi quando a viu.

Parada num canto oposto, ela olhava para ele com olhos vazios, a boca cerrada em um traço de ódio, os longos cabelos louros sujos e desgrenhados caindo sobre sua face morta. Usava um uniforme escolar sujo e ensanguentado, e ficou ali, parada, imóvel, os olhos negros fitando Gabriel.

O garoto tentou gritar mas sua voz não saia.. Suas pernas viraram manteiga diante da visão macabra que se apresentava diante de seus olhos. Quando o pânico tornou-se insuportável, seu corpo meio que no automático obrigou as pernas a se moverem em direção à porta. Não chegou a alcançá-la. Mãos cadavéricas seguraram sua blusa, e ele ainda teve tempo de vira-se e ver a horrível cara da menina morta deformar-se em um esgar macabro e um som gutural e grave escapou daquele buraco negro que era a boca da aparição.

O três garotos do outro lado da cerca ouviram o grito horrível que Gabriel soltou ao morrer, mesmo que naquela hora eles não soubessem o que estava acontecendo. E não ficaram ali para conferir. Dispararam rua abaixo, em pânico, cada um para sua casa, e nunca mais falaram sobre o assunto depois daquela noite. Se eles tivessem esperado um pouco mais, poderiam ter observado a figura esguia, com longos cabelos grisalhos e um casaco de couro surrado que saiu da escuridão do outro lado da rua. Seus olhos vermelhos fitaram o velho prédio da escola, e ele balançou a cabeça com um sorriso triste nos lábios.

"Crianças", sussurrou o velho caçador... "quando vão aprender?"

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